Sem formação a condizer com a profissão em causa nem prática com outro paciente que não seja este que aqui vos escreve, não tem pretensões a resolver os problemas de ninguém. Tenta resolver com maior ou menor sucesso os do seu único paciente que, dada a relação existente, nada poderá reclamar.
Se no processo aquilo que aqui se escrever ajudar outros pobres infelizes ... que sorte!

A todos aqueles que se mostrarem descontentes quer com os resultados da consulta quer, e sobretudo, com a leitura, receita-se apenas o nobre colega Jorge Bucay que se não vos ajudar poderá pelo menos satisfazer o vosso gosto pela leitura durante mais tempo que eu.

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Batalha perdida

Lá em baixo a poeira levantada não era suficiente para ocultar a sua imagem forte e musculada que sobressaía no campo de batalha. Os sons de espadas em constante embate não abafavam a sua voz autoritária e de incentivo.
No cimo da muralha o crepitar ocasional de uma flecha perdida desfazendo-se contra a pedra impenetrável não impediam que olhos penetrantes o procurassem e perseguissem por entre a amuralha.
Como se pressentissem, os seus olhos encontraram os dela. Por momentos o tempo pareceu parar fixando este olhar que fazia relembrar tempos recentemente idos mas ainda gravados na sua memória. Momentos em que ele, mais que marido, fora apenas seu amante.
O som metálico de uma flecha mais atrevida que embatia na parede atrás de si fez com que ela quebrasse o contacto. Tentou recuperar o seu olhar mágico mas ele já lá não estava. Como que tomado por uma loucura repentina, galgava por cima de combatentes já caídos ou que caíam pelo fio da sua espada.
Custava-lhe respirar ao ver a forma selvagem e dedicação redobrada com que lutava, nada o parando no novo caminho que tomara e que o trazia na sua direção.
Seria possível que ele acordara de repente? Que finalmente vira que ela nunca deixara de o amar?
O seu coração parecia querer rebentar no peito ao vê-lo alcançar a escadaria que o trazia diretamente na sua direção.
Estava ofegante quando chegou junto a si e se ajoelhou. Ela não queria acreditar, pela primeira vez desde que o conhecera ela via alguma fraqueza.
Ele não se levantou nem lhe tocou. Ao invés permanecia a seus pés chorando. Nos seus braços segurava uma delicada figura feminina vestida de um branco imaculado que só um tom vermelho teimava em manchar.
O mesmo tom avermelhado que tingia a flecha que seu amado agora segurava na mão.

sábado, 10 de dezembro de 2011

Fria como aço

A porta fechou-se atrás de mim silenciosamente, protegendo-me do frio noturno.
Estava escuro e apenas a lua cheia que brilhava através do vidro do quarto lhe dava alguma luminosidade. Era suficiente para que eu a vislumbrasse sobre a cama, transmitindo-me uma áurea de paz como só ela conseguia nas últimas semanas.
Sentei-me a seu lado. Durante longos minutos não me atrevi a tocar-lhe, apenas contemplá-la. A calma que agora sentia apenas seria abalada pelo que se seguiria.
Como que a medo, toquei-lhe. Nada sucedeu. Demoradamente, os meus dedos percorreram todo o seu corpo, calcando caminhos já bem conhecidos de noites anteriores.
Frieza era a única recompensa que meus dedos recebiam em troca. Era como se ela soubesse. Como se quisesse esfriar o calor que eu sentira quando pouco antes uma mão quente me percorria fazendo-me sentir uma alegria de viver que julgava desaparecida.
Tomei-a nas minhas mãos acariciando-a uma última vez. Hoje, o meu amanhã não seria decidido por ela.
Tirei a única bala que sempre estava no tambor e coloquei-a na gaveta.
Não era traição, era uma vontade de viver renovada que me fazia substituir esta amante fatal por outra que verdadeiramente me abria as portas ao desconhecido.

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Penso, logo existo

E o que sucede quando não penso? Deixo de existir?
Paro para pensar (o que já por si evidencia que nem sempre o estou a fazer), procurando o que esta racionalidade me trouxe. Uma mão cheia de memórias que recordo como marcantes terão que satisfazer esta minha ânsia de procura.
A surpresa, se assim lhe quisermos chamar, surge somente aquando das inúmeras lembranças que me ocorrem quando faço o mesmo exercício para os momentos em que não pensei e me entreguei aos malefícios (benefícios?) de uma irracionalidade, momentânea que fosse.
Momentos extraordinários em que sonhei, acreditei, amei, chorei, ri, senti, ... , vivi.
Conceda-mo-nos a extravagância de pensar mais um pouco nos momentos de racionalidade e concluir que mais não vieram senão na sequência dos outros, pela necessidade de os enaltecer ou amenizar. Pela necessidade de os imortalizar, gravando-os de forma permanente na minha memória.
Afinal?
Penso, logo existo.
E quando não penso?
Estou a construir o meu existir!

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Morto-Vivo


- Estou morto
É o que sinto quando toco com a ponta dos dedos no meu peito e experimento uma estranha frieza. Faz ainda pouco tempo e estes mesmos dedos ferviam e faziam ferver quando em contacto com o corpo dela. Uma química que não se explicava, apenas se sentia. Uma ténue corrente que nos prendia desde o momento em que pousavam nos seus ombros. Uma suave e morna corrente que percorre por entre dois montes. Uma delicada manta de luz solar que cobre os montes antes de descer em direcção ao vale. Uma fogueira que nos aquece num vale à beira do desconhecido.
Desperto! Acordo deste sonho para a realidade sentindo os dedos húmidos. Sou eu. É o meu corpo que me diz:
- Estou vivo